terça-feira, 30 de maio de 2017

Reviravolta

Duas semanas, duas longas semanas sem vir aqui falar convosco, e só posso imaginar o que neste momento pensam de mim, e do que me terá sucedido. Quem leva uma vida como a minha, como uma das minhas vidas, pelo menos, está sempre sujeito a ser apanhado e preso, e quem leva uma vida, uma vida qualquer, está sempre sujeito a deixar de a levar a qualquer momento, que é o que todos fazemos quando batemos a bota, esticamos o pernil, entregamos a alma a Satanás, falecemos, em suma. Estejam contudo descansados a meu respeito, ou então preocupados, isto conforme levem ou não a existência a sério, pois nada disto me aconteceu. Não estou na cadeia, e não estou mais morto do que estava antes, isto é, continuo vivo por fora.

Não, meus amigos, o que me aconteceu foi muito mais interessante do que isso, mais espectacular do que a prisão de uma família inteira da Máfia, mais exuberantemente fúnebre do que todas as mortes do mundo. Extravagantemente, extraordinariamente, sem direito nem razão, apaixonei-me! Sim, eu sei que na maior parte das pessoas isto é uma ocorrência banal, que ocorre pelo menos duzentas vezes ao dia, quinhentas se contarmos com as telenovelas. Mas eu não me apaixono, porque não gosto de ninguém, é algo que já de há muito sabem sobre mim. A única coisa que faço é limitar os meus impulsos, coibir-me de matar todas as pessoas que detesto, e é sobretudo por isso que ainda não me suicidei. Mas Isabel – o nome dela é Isabel, e pouco mais sei por enquanto – Isabel é diferente. O que sinto por ela não tem paralelo com nada que eu alguma vez tenha sentido, e até a enorme tristeza que me invade é diferente das tristezas que diariamente me assolam.

Não é contudo uma tristeza menor, e para a aliviar empurrei o Barbosa para debaixo de um autocarro. O Barbosa era um palerma proprietário de uma agência funerária, que agora se vai ver obrigado a dar uma borla a si próprio, por não ter mão com que puxar da carteira para pagar o enterro. O mais curioso neste banal falecimento do Barbosa é que não o fiz para aliviar uma tristeza própria e intrínseca, como a maioria dos meus pecadilhos, mas apenas e unicamente a tristeza mais funda que me causa o meu amor por Isabel. Isso fará dela uma cúmplice do crime, ou mesmo a sua autora virtual? É belo se assim for, começamos já por ter algo que nos une!

Há outra coisa de que já me tenho lembrado: preciso de arranjar uma arma. Estes assassínios de improviso começam a tornar-se pouco práticos, e a exigir demais à minha imaginação.

Vivam bem, boas mortes, e sobretudo não sejam apanhados.

segunda-feira, 15 de maio de 2017

Falecimento do Pato que ainda agora tinha entrado em cena

Acho que é mais fácil ser um assassino em série do que um narrador dos feitos dos mesmos. Não pelo trabalho que dá, pois esse pouco difere – vão ter de aceitar a minha palavra a esse respeito, porque o meu advogado aconselha-me a não me alongar sobre este ponto. De qualquer forma, o problema é a disponibilidade de candidatos a cadáveres. Enquanto a vida real está cheia deles, as narrativas ditas ficcionais estão forçosamente limitadas ao leque de personagens que as povoam.

O Pato é um bom exemplo disso. Por economia de enredo, era o único agente da autoridade de que dispúnhamos, e seria uma boa ideia conservá-lo – isto é, conservá-lo vivo, visto que muito poucos investigadores criminais conseguem apresentar um bom trabalho depois de ficarem esticadinhos. Mas infelizmente ele tomou a desagradável atitude de me ignorar, o que naturalmente me forçou a espetar-lhe uma vara extremamente ferrugenta num local que não identifiquei inteiramente, mas que veio a provar-se fatal. O resultado disto é que o próximo inspector vai ter de investigar duas mortes.

Espero que por esta altura já tenham percebido que eu não sou um assassino em série, e muito menos um narrador de casos fictícios. Sou, pelo contrário, uma pessoa cordialíssima, que apenas gosta de ser respeitada. Se alguém me insulta com a sua intolerável alarvidade, ou com o desprezo de não me dirigir a menor pergunta, parece-me que a atitude razoável a tomar é matá-lo. Se isto faz de mim um assassino, então somos todos assassinos. Bem, um ou outro de nós, pelo menos.

Vivam bem, boas mortes, e sobretudo não sejam apanhados.

segunda-feira, 8 de maio de 2017

Teodoro e o Pato

Este meu diário, se assim lhe posso chamar, não está a andar tão depressa como eu esperava. É uma chatice, isto de tudo levar tanto tempo. Sem embargo, também não deixa de ser verdade que se as coisas não levassem tempo viriam a acontecer todas ao mesmo tempo, o que se podia tornar confuso, sobretudo na altura de acertar o despertador. Mas do que eu vos vinha falar era do Pato que visitou hoje o café. Não se tratava de um pato de verdade, é claro, que esse ainda teria menos de fazer ali do que nós, e que já é muito pouco.

Era um inspector da Polícia Judiciária que vinha investigar as circunstâncias da morte intempestiva de um outro frequentador, o Ambrósio – um tipo irritante que eu matei ontem, acho que me esqueci de vos dizer, também não nos podemos lembrar de tudo. Passei completamente despercebido ao investigador, o que me aborreceu, e me levou a atirar-lhe um prato. Porquê? Bem, conto-vos amanhã, que hoje já é muito tarde.

Vivam bem, boas mortes, e sobretudo não sejam apanhados.

sábado, 6 de maio de 2017

O começo de Teodoro

É usual começar um texto apresentando o seu narrador, o que normalmente consiste, para ficarmos pelos mínimos, num nome e idade. Esta última nem sempre é usada, mas é em certos casos imprescindível. Vejamos, então:

O meu nome, já devem sabê-lo, é Teodoro, embora isto não seja realmente verdade, e nasci hoje. Não, não receiem fraldas sujas e leite azedo, que não é desse tipo de nascimento que falo. No meu caso, que deve ser igual a todos os outros, na possibilidade de os haver, tratou-se apenas de atravessar uma cortina que separava a vida que findava daquela que ora se iniciava. A cortina era na verdade um jorro da cor do sangue, que se devia, conforme o meu paladar apurou, tratar-se realmente de um jorro de sangue. AB - , estão aqui a dizer-me, e não vejo por que não seria verdade.

Emergi do outro lado num estado previsivelmente ensopado em sangue, mas ao mesmo tempo fresco e limpo, isto por dentro, é bom de ver, que pouca gente se consegue manter fresca e limpa no estado que descrevi. Mas a minha alma, para usar esse termo arcaico, estava como nova. Mais, estava melhorada. Via agora a quantidade de coisas a que se dá importância na primeira vida, na de treino, digamos, e que são na verdade completamente irrelevantes. Refiro-me a coisas como a amizade e a beleza e o amor e a morte. A morte, sobretudo, é elevada a pináculos quase sagrados, como se tivesse uma importância suprema.

É claro que há mortes importantes, mortes que se faz mister evitar na medida do possível. Refiro-me sobretudo, à nossa própria morte, por termos pisado indevidamente um calo a alguém. Mas não há tragédia nenhuma em matar um tipo que pisou o nosso calo. Não é a melhor solução, confesso. O ideal é não termos calo nenhum. Mas já que ele ali está, e o outro tipo o pisou, que diabo, espete-se-lhe uma vara ferrugenta no pâncreas, e não pensemos mais nisso.

Compreendo que estes conceitos são talvez um pouco novos, para não dizer chocantes, para o iniciado nestas lides, e requerem o seu tempo para serem absorvidos. Deixo-vos portanto a matutar nisto, e amanhã contarei mais.

Vivam bem, boas mortes, e sobretudo não sejam apanhados.